Sentir fome é natural. Mas comer para calar o que sentimos é um outro jogo — silencioso, recorrente e exaustivo. A chamada fome emocional não tem relação com a necessidade fisiológica de alimento, mas sim com a tentativa de regular estados afetivos por meio da comida. E não, isso não é apenas falta de força de vontade. É um padrão comportamental e neuropsicológico complexo, influenciado por experiências emocionais, traumas, cultura e até por marketing alimentar.
O que é, de fato, a fome emocional?
É o comer motivado por sentimentos — geralmente os negativos: ansiedade, raiva, solidão, tédio, frustração. Não parte do estômago, parte da psique. O cérebro, ao tentar regular esse mal-estar, ativa o circuito de recompensa (principalmente o sistema dopaminérgico), o que explica por que alimentos ricos em açúcar, gordura e sal são os favoritos nesses episódios: eles ativam áreas cerebrais que dão alívio temporário — mas só isso.
Como diz Susie Orbach, psicanalista britânica autora de Fat Is a Feminist Issue, muitas vezes o corpo se torna palco para lidar com dores emocionais não elaboradas. Ela aponta que comer pode funcionar como substituto de cuidado, conforto e segurança, especialmente quando essas necessidades não foram suficientemente atendidas no desenvolvimento emocional.
Psicologia e neurociência explicam
Segundo estudos de neurociência afetiva, principalmente os de Jaak Panksepp, o sistema límbico (envolvido nas emoções) está profundamente conectado com áreas relacionadas à recompensa e motivação alimentar. Quando estamos vulneráveis emocionalmente, buscamos estímulos que nos tragam prazer rápido — a comida é um deles, mas não o único.
Outro ponto importante: memórias afetivas envolvendo comida são armazenadas no hipocampo e no córtex pré-frontal. Aquele bolo da infância que a avó fazia não é só bolo: é lembrança de vínculo, de proteção, de afeto. O cérebro associa isso a conforto e repete o padrão quando se sente inseguro ou ameaçado.
Quando o emocional desregula o nutricional
A fome emocional pode evoluir para padrões alimentares disfuncionais e transtornos alimentares. Os mais comuns:
•Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica (TCAP): episódios de ingestão exagerada de alimentos em pouco tempo, com sensação de perda de controle e culpa. Muito associado a tentativas frustradas de regulação emocional.
•Bulimia Nervosa: ingestão compulsiva seguida de comportamentos compensatórios (vômito, laxantes, jejuns prolongados).
•Anorexia Nervosa: restrição alimentar severa por medo de ganhar peso, muitas vezes ligada a perfeccionismo extremo e necessidade de controle.
Todos esses transtornos envolvem, em algum grau, o uso da alimentação como ferramenta para lidar com questões emocionais não resolvidas. E as consequências não são só emocionais — incluem déficits nutricionais sérios, risco cardiovascular, alterações hormonais e até morte.
A nutrição como ferramenta de cuidado — não de punição
Do ponto de vista nutricional, restringir radicalmente alimentos como forma de punição por “exageros emocionais” é contraproducente. Isso apenas reforça o ciclo de compulsão e culpa. A abordagem mais eficaz, segundo a nutrição comportamental e a alimentação intuitiva (Tribole & Resch, 1995), é reconectar o indivíduo com os sinais reais de fome e saciedade, retirando o peso moral da comida e focando na relação saudável com ela.
Consequências futuras: por que isso precisa ser olhado agora?
Ignorar a fome emocional pode levar a um ciclo cada vez mais forte de automedicação via comida. Isso desgasta a saúde física, sabota a autoestima e mina a autonomia. Pessoas que vivem nesse ciclo tendem a apresentar mais quadros de depressão, ansiedade, baixa autoconfiança e isolamento social.
Além disso, a indústria alimentícia — que investe bilhões em neuromarketing — sabe muito bem como explorar fragilidades emocionais para vender produtos ultraprocessados com apelo emocional. E se você não entende o que te leva a comer, será facilmente manipulado.
Conclusão
A fome emocional não é frescura, nem descontrole. É um sintoma de um mal-estar interno não verbalizado, muitas vezes aprendido na infância, reforçado por traumas e perpetuado por uma cultura que vende corpo e felicidade embalados a vácuo.
O caminho para quebrar esse ciclo é o mesmo para quase tudo que é emocionalmente verdadeiro: autoconhecimento, suporte profissional (psicológico e nutricional) e práticas de cuidado com compaixão, não com castigo. Agendar consulta com a psicóloga Hellen Campos
Fontes consultadas:
•Orbach, S. Fat is a Feminist Issue. Arrow Books, 2006.
•Tribole, E., & Resch, E. Intuitive Eating. St. Martin’s Press, 1995.
•Panksepp, J. Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal Emotions. Oxford University Press, 1998.
•American Psychiatric Association. DSM-5-TR: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5ª edição, revisão de texto, 2022.